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A criança e a origem do seu sintoma: um breve percurso na teoria psicanalítica

Por Vivian Malta

Em 1909, ao relatar o “Caso do Pequeno Hans”, Sigmund Freud já indicava que o entrelaçamento do sintoma da criança às fantasias parentais colocava o psicanalista em uma posição de ouvir diferentes demandas e discursos sobre a criança para poder intervir como um elemento separador, permitindo um descolamento entre a demanda dos pais e o sintoma da criança. A prática é justificada pela posição de dependência estrutural da criança frente a seus cuidadores fundamentais. Segundo Freud, desconsiderar esse “nó sintomático” poderia inviabilizar o tratamento da criança.

 

Maud Mannoni, em seu trabalho “A criança, sua doença, e os outros”, afirma que a criança não é uma entidade em si, mas faz parte de um discurso coletivo. Isso aponta não só para as diferentes demandas que surgem no processo psicanalítico de uma criança, como as divergências teóricas implícitas na direção clínica escolhida por diferentes autores.

 

Para Anna Freud (1971), por exemplo, as forças para enfrentar na cura de uma neurose infantil são não só internas, mas parcialmente externas em função da fraqueza do superego da criança. Essa autora privilegia a vertente pedagógica na análise de uma criança, através da orientação de pais. Já Melanie Klein (1997), defende a idéia de que o aparelho psíquico se encontra constituído desde as origens através dos mecanismos de projeção e introjeção, desconsiderando a influência dos pais da realidade, já que seu maior interesse vai recair sobre a imago internalizada dos pais e a vida fantasmática da criança. Por isso, a teoria kleiniana é denominada de teoria do “sujeito constituído”, enquanto a lacaniana privilegia a questão da “constituição do sujeito”. Assim a teoria de Melanie Klein postula um aparelho psíquico constituído desde as origens, enquanto Jacques Lacan (2003) indica que a constituição da subjetividade advém do campo do Outro.

 

O infans vem ocupar um lugar marcado pelo desejo materno, se alienando na imagem de um Outro. Isso instaura uma relação dual, especular, imaginária, onde a criança sofre de uma dependência quase que total na demanda pelo amor da mãe, capturada por este olhar com o qual ela se identifica e se aliena. O pai é recolocado, por Lacan, em sua função primordial dentro da teoria freudiana de operador do Complexo de Édipo. Não se trata do pai enquanto presença ou ausência concreta, mas enquanto dimensão simbólica que exerce uma dupla castração (para a mãe e para a criança) sob a forma de interdição que introduz a Lei e possibilita à criança entrar na ordem da linguagem. É preciso que a criança se separe do efeito mortífero do desejo materno (de ficar no lugar de ser para sempre o desejo da mãe), para se constituir como um sujeito desejante.

 

As implicações da teoria lacaniana e de outros autores franceses como Manonni (1980) e Dolto (1989) para a clínica com crianças ocorrem numa dupla vertente: o discurso parental é privilegiado não como possibilidade de informar (anamnese) e discorrer sobre a história da criança, mas sim como desvendamento da posição que a criança ocupa na fantasia parental, enquanto cabe ao analista suportar a transferência em sua dupla faceta: a dos pais e a da criança.

 

Mannoni e Dolto mostram que a neurose dos pais tem um papel fundamental na eclosão dos sintomas da criança, pois esta fixa sua existência num lugar determinado pelos pais em seu sistema de fantasias e desejos. A criança procura responder ao enigma dos significantes obscuros propostos pelos adultos, se identificando ao que julga ser objeto do desejo materno, tentando preencher a falta estrutural do Outro e evitar a angústia de castração (assunção da própria falta).

 

Lacan em “Notas sobre a criança” aponta que a criança responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar, podendo se posicionar em duas vertentes: ou a criança responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar e neste contexto seu sintoma representa a verdade do desejo parental; ou o sintoma corresponde à subjetividade da mãe, onde a criança é tomada como correlativo de um fantasma, obturando a falta onde se especifica o desejo materno, realizando a presença do objeto a na fantasia.

 

Aqui se apresenta a relação entre a estrutura familiar e o sintoma da criança, onde existe a possibilidade ou de uma apropriação sintomática da criança através de suas produções fantasmáticas, ou de um assujeitamento mortífero ao desejo do Outro. A intervenção clínica pode privilegiar uma dessas direções: se interessar pela questão familiar, interpretando a criança apenas como sintoma dos pais, o que justificaria uma intervenção a nível familiar, ou se interessar pela verdade do desejo do sujeito e se constituir numa prática de subjetivação.

 

Em seu trabalho “A primeira entrevista em psicanálise”, Mannoni alerta para a dimensão simbólica do sintoma da criança, onde a demanda dos pais muitas vezes esconde a verdadeira questão do sujeito, pois este presentifica, com seu sintoma, a “mentira” do adulto. Assim, o que pode fazer mal a uma criança não é a situação real que ela vivencia, mas o que nesta situação não foi verbalizado. É o não-dito que introduz o “trauma” na criança, que procura responder ao enigma proposto através de suas produções fantasmáticas.

 

Em “Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social”, Angela Vorcaro ressalta que o atravessamento da criança-sintoma pelo sintoma da criança implica o paradoxo que a condição de criança demarca: mesmo sem estrutura já decidida da gestão do desejo, é possível e imperativo localizar e diferenciar os sujeitos que formulam a demanda, para que a especificidade da formulação possa tornar-se demanda endereçada e fazer o laço transferencial.

 

Referências

DOLTO, Françoise. Inconsciente e destinos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.

FREUD, Anna. O tratamento psicanalítico de crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1971.

FREUD, Sigmund. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v.10. Rio de Janeiro: Imago, 1980b.

KLEIN, Melanie. A psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola. In: Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar. 2003.

LACAN, Jacques. Notas sobre a criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

MANNONI, Maud. A Criança, sua doença e os outros. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1980.

MANNONI, Maud. A primeira entrevista em psicanálise. 27. ed. Rio de Janeiro:  Elsevier, 2004.

VORCARO, Angela. Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 1999.    

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Clinic and psychoanalytic research

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