Por Lina Petraglia.
Resumo:
Este trabalho pretende apresentar a especificidade de um psicólogo orientado pelos pressupostos teórico-clínicos da psicanálise na experiência de lecionar a disciplina Cultura & Cidadania a uma turma de alunos na faixa de 14 anos em um projeto que visa prepará-los para aprovação em concursos para escolas públicas renomadas. Basearemo-nos no que têm a dizer Freud e Lacan, sobre as relações sociais, abordando principalmente a questão da ética e a impossibilidade de se sustentar um saber total sobre o outro. Priorizaremos o que a teoria psicanalítica oferece como o saber inconsciente do próprio sujeito sobre si, que a partir de sua divisão, produzirá suas próprias verdades como caminho para a desalienação do saber do Outro.
Palavras-chave: escola, adolescência, psicanálise, ética.
Apresentação:
Pretendo aqui, direcionar o olhar do leitor ao que me chama atenção na experiência de professora de Cultura & Cidadania em um projeto no Rio de Janeiro, que prepara alunos de escolas municipais, que tomam a decisão de participar de concursos para outras escolas, também públicas, mas que, diferentemente daquelas nas quais estudam, apresentam melhores resultados em pesquisas que medem a qualidade do ensino, por exemplo o IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - o Ideb, ferramenta criada pelo Ministério da Educação para avaliar as escolas brasileiras.
O projeto a que me refiro se chama PCS – Projeto Contruindo o Saber, e começou em Rio das Pedras, tendo hoje, outros dos núcleos, um na PUC e outro na Fundação Getúlio Vargas - Rio. As provas dos processos seletivos para as tais escolas públicas bem avaliadas, como Pedro II, CAP-UFRJ, CEFET, constam de uma avaliações em matemática e português, além da elaboração de uma redação, portanto entre as matérias ministradas, estas, obrigatoriamente deveriam ser ensinadas.
O interessante do Projeto é que, a estas três disciplinas, adiciona-se o que chamamos de Cultura & Cidadania; mas sobretudo, o fato de que, para lecionar em um dos núcleos, o da FGV-Rio, a profissional convidada para ministrar o curso (se é que podemos falar em ministrar um curso desta sorte), tenha sido eu, na época no final da graduação em Psicologia.
Quando recebi o convite, eu, que, antes de estudar Psicologia, fiz alguns períodos da faculdade de Direito, pensei imediatamente que não seria a pessoa indicada para o cargo. Eu mesma não conheço a fundo o que diz a Constituição sobre os direitos e deveres do cidadão. Mas, enquanto digeria a proposta, acabei me deparando com um lado da discussão que não costumamos levar em consideração quando discutimos a questão da Cidadania, o lugar do cidadão, mas enquanto sujeito de desejo vivendo em comunidade. Rapidamente, esta reflexão me remeteu ao mal-estar que descreve Freud, por vivermos imersos na cultura e embarquei em um deslizamento na minha cadeia de pensamentos que me levou, especificamente, à dificuldade da própria adolescência, momento pelo qual estariam passando meus futuros alunos: a dificuldade de se posicionar frente à família, à escola, aos amigos, à política, enfim, à sociedade de modo geral, devido a seus conflitos subjetivos.
O objetivo deste trabalho é, discutir, a partir de uma visão orientada pela psicanálise, o papel de um profissional da área da psicologia, nos debates que concernem às questões da cultura e da cidadania com adolescentes, dentro de um curso preparatório para exames de aprovação.
Pretendemos submeter à exame o contexto social no qual estamos inseridos, tal qual minha experiência como professora voluntária no PCS, que consta em uma abordagem dos assuntos propostos, a partir de um viés subjetivo, procurando abrir espaço para a escuta e elaboração dos conflitos pelos próprios adolescentes. Para tanto, utilizaremos as formulações de Jacques Lacan a respeito dos discursos como forma de fazer laço social, em particular os discursos do mestre e do analista em um contexto que se assemelha a um contexto escolar, distinguindo aqui, as noções de o saber produzido pelo Outro do saber inconsciente do sujeito. Abordaremos também a questão da ética em psicanálise, privilegiando o que aprendemos, com Lacan, a chamar de ética do desejo.
Introdução:
Partiremos do adágio de que para discutir sobre qualquer assunto, principalmente, sobre cultura e cidadania, precisamos examinar o contexto da discussão. No nosso caso, é importante ressaltar a virada epistemológica do pensamento clássico para o pensamento moderno.
A virada moderna se dá com o advento da física matemática. Deixa-se de contemplar o mundo como finito, e se abre uma janela para o universo, universo este, aí sim infinito e ao qual não se pode ter acesso, senão pelas produções e cálculos da própria ciência (KOYRÉ,1986).
Esta (a ideia de uma estrutura finita hierarquicamente ordenada) é substituída pela de um universo aberto, indefinido e mesmo até infinito, que as mesmas leis universais unificam e governam. Um universo no qual todas as coisas pertencem a um mesmo nível. (…) As leis do céu e as da Terra são, partir de agora, fundidas em conjunto (KOYRÉ, 1986, p. 18).
Não há uma mais uma noção de verdade divina, vedade universal, “Deus está morto”, disse Nietzsche (2002). Estamos entre os homens e o que importa ao saber da ciência são suas próprias produções, sem a perspectiva de alcançar um saber total, uma verdade absoluta. O registro da falta, nos clássicos, era suprido por aquele que tudo pode, o Sobrenatural, o Todo Poderoso, na modernidade, a ferida está aberta e a cicatriz da falta está marcada no corpo.
Se antes, o homem podia dizer que havia uma força divina que controlava do céu à terra e que o salvaria dos sofrimentos, bastava ter fé; os modernos não podem recorrer a Deus, pelo menos não à vera. A figura do todo não se sustenta nesta lógica. Não há a quem recorrer, a falta está aí e o sujeito terá de se haver com ela.
O que a morte de Deus, nesse sentido, pode trazer como consequência?
Paralelamente à virada epistemológica, ao abandono da tangibilidade do todo como um conjunto, é possível pensar o texto freudiano de 1913, que, sob forma de um mito, descreve a passagem da selvageria à comunidade organizada, também pela morte, desta vez assassinato, da figura paterna. O texto, Totem e tabu, é amplamente conhecido, portanto abordarei aqui, apenas a parte que nos toca.
Em uma comunidade grupal, havia um pai, que gozava de todas as mulheres e impunha suas vontades à horda filhos. Os filhos revoltados, em certo momento se unem, e percebem que juntos, seriam mais fortes que o pai gozador. Eles decidem assasiná-lo para tomar seu lugar e comemoram sua morte com o banquete totêmico, no qual comem sua carne. O assassinato do pai é sentido pelos próprios filhos de forma ambivalente, pois se o pai lhes restringia os direitos, por outro lado era a encarnação da figura da Lei, e os protegia dos perigos externos, tal qual uns dos outros. A mistura de amor e ódio dos filhos ao pai é geradora de um sentimento de culpa após o assassinato, por um lado estão satisfeitos em poder gozar do que antes não podiam, por outro sentem-se culpados pela morte daquele que amavam. Preocupados com o que aconteceria sem a presença da figura da Lei, os homens do clã decidem-se por estabelecer uma lei para organizar a vida em comunidade (FREUD, 1913/1996).
O importante para nós é a diferença entre natureza da Lei encarnada na figura de Deus, tal qual na do pai da horda; e a lei instaurada pela ciência, assim como aquela criada pelos, antes filhos, agora homens, do clã.
A primeira é uma lei que não abre espaço para a falta, existe alí uma figura, toda-poderosa, que tamponará a falta, e à qual se poderá recorrer caso algo dê errado. No segundo caso, o que vemos é uma lei que se instaura, necessariamente, já que houve uma renião de homens, na dimensão da linguagem, cuja característica principal é o equívoco. Na lei divina, há o certo e há o errado, o céu e o inferno; já a lei simbólica versa uma coisa, mas esta pode ser significada de diferentes maneiras, dependendo do intérprete e da situação.
Esse assassinato, ou essa destituição (nem sempre mortífera), tem uma dimensão ética, pois é o que possibilita a passagem da sujeição à condição de sujeitos desejantes. Mas ela institui também, com a passagem do arbítrio paterno à Lei abstrata, a dimensão inconsciente de um saber do sujeito sobre o desejo e também sobre o assassinato ao que ele deve sua condição (KEHL, 2002, p.48)
Se tratamos aqui das verdades científicas, por exemplo, podemos falar de leis, mas sabemos que estas leis são criações da própria ciência e que só se fazem valer pela utilidade prática. A ciência não quer saber do universal, ocupa-se de objetos, circunscritos por ela em categorias. Ela tratará de comparar os objetos, operando entre eles relações de causa e efeito. Mas o que faz ver a regra da comparação, senão a própria irredutibilidade de um objeto à outro, da causa ao efeito?
A causa é uma produção do homem que vem no lugar da falta da Lei encarnada. Entre a causa e aquilo que ela afeta há uma falha. E esta falha, a lei não resolve, ela falta, produz falta. A lei não soluciona seu objeto, mas nem por isso deixará de versar sobre ele. Pois bem, é deste hiato que se trata.
O fantasma é, portanto, que haja uma causa original, ou que uma certa lei dará conta de resolver permanentemente a questão sobre a qual versa, coisa que reconhecemos impossível. A lei humana, imersa em linguagem, não resolve o problema, no entanto, não se a pode jogar fora. Há um hiato, um impossível de apreender, de explicar, mas do qual não se escapa.
O sujeito moderno é, portanto, marcado pela falta. Desde que sua integração com o todo se esvai pelo furo que dá a ele um lugar - como no caso dos filhos que matam o pai para substituí-lo - não há nada que vá restituir a ordem tal qual existia antes da inserção na linguagem, já que após sua morte, o sentimento de culpa, a dívida simbólica, não os deixa gozar plenamente daquilo que lhes era proibido. A lei que eles instauram não deixa de operar a partir da figura morta do pai, a figura do Outro, mas nunca se encarregará da ordem da comunidade como o fazia sua presença.
Depois da morte de Buda, sua sombra ainda se mostrou durante séculos numa caverna – uma sombra enorme e aterradora. Deus morreu: mas os homens são de tal modo, que haverá ainda, talvez, cavernas nas quais a sombra se mostrará por muitos séculos. E nós – nós também ainda precisamos vencer sua sombra (NIETZSCHE, 2002, p. 108).
A lei dos homens não supre a ausência da figura divina, sentida, pelo contrário como uma presença; pois é uma lei estruturada por significantes, como linguagem. Não há mais Pai como presença, este aparece, mas como ausência e portanto podemos dizer que a lei dos homens é a lei do nome no lugar da coisa. O Nome do Pai aparece aqui como Lei, e se antes estava encarnado na figura do Pai, agora não é, senão o nome do lugar dos significantes que versam sobre o sujeito.
Desde que a figura mítica do Pai está morta, não resta mais que a linguagem, a qual se utilizará para instaurar uma nova lei, desta vez simbólica e feita de significantes. E como já dissemos, da operação significante produz-se necessariamente um resto, algo de inefável, que foge à representabilidade. É este resto que nunca se apreende, que opera no sujeito, como objeto causa de desejo, definido por Lacan (1985) como objeto a. Não há um objeto que encarne necessariamente esta função, os objetos se alternam e permanecem desejáveis apenas enquanto faltosos.
É por isso que Lacan (1995) trata de relações de objeto e não de escolha de objeto:
[...] no centro da relação sujeito-objeto, uma tensão fundamental, que faz com que o que é procurado não seja procurado da mesma forma que o que será encontrado. É através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado, e que é encontrado e apreendido noutra parte que não noutro ponto a que se procura. (LACAN, 1995, p. 13).
A fantasia do sujeito moderno, aquele do qual se ocupa a psicanálise, se coloca justamente como todas as possibilidades que o sujeito tem de articular sua relação com o objeto a.
Disso, o que concluímos é que o sujeito é marcado pela falta, ela é necessária para sua cconstituição; além disso, pudemos vislumbrar que, já que não se insere em nenhum universo, senão o da linguagem, nunca conseguirá recobrir com o que diz querer, aquilo que deseja. Mas nem por isso deixará de falar, e assim desfiará suas cadeias significantes. O resto é fruto necessário da operação significante, sempre fica algo por dizer e é, precisamente isso que retorna ao sujeito sob diferentes formas, às vezes como um objeto causa de desejo, mas às vezes, se nos deparamos com a ausência sem nada poder falar sobre ela, seu efeito é a angústia, aquilo que não engana, e do qual tentamos escapar a qualquer preço.
Cremos aqui ter examinado suficientemente para nossos propósitos o sujeito do paradigma moderno, do qual trataremos neste artigo. Partiremos agora para uma delimitação do assunto sobre o qual trataremos, que é, como mencionamos, o papel do profissional de psicologia, no caso, com afinidade à teoria psicanalítica, em um contexto que se assemelha a um ambiente escolar inserido no contexto descrito aqui como moderno.
Modernidade e Escolarização:
Partamos para uma reflexão sobre as influências da modernidade sobre o processo de escolarização contemporâneo. A escola, naturamlente, não pode ser assim generalizada como se houvesse apenas uma, ou como se todo o período escolar tratasse a formação dos alunos sob uma mesma perspectiva. Trataremos aqui, especificamente, de alunos que estão ingressando o ensino médio, já que é este público que frequenta o curso onde dou aula.
Observamos na sociedade, uma ratificação constante do que se descreveu acima como a busca incessante pelo objeto acausa de desejo. Este, como já dissemos, é aquilo que se acredita ser capaz de acabar a sensação de falta, que não apenas é inerente ao sujeito, mas o constitui. Dissemos então, que o aassume diferentes formas conforme o sujeito articula sua demanda pelo encadeamento dos significantes que encontra no Outro. Embora o desejo esteja imbricado na demanda, esta não o expressa, senão sob forma de ficção; e o objeto causa de desejo, portanto, nunca se encadeia aos outros significantes. Ele aparece junto à cadeia, mas fora dela, entre os significantes. Sua característica é a de interdito, ou melhor, inter-dito, entre os ditos. (LACAN, 1958/1998)
A pergunta que devemos fazer é a seguinte: como se pode ver o que as formas de relação social observadas na sociedade de modo geral, tal qual na escola, têm a ver com o que examinamos da constituição subjetiva.
O que observamos no mundo é uma busca incessante pela novidade, pelo sucesso e não aquele sucesso que se vê aparecer após inúmeras realizações, o que se busca é o sucesso instantâneo, os famosos cinco minutos de fama. E o que se pretende com a fama, senão um reconhecimento do Outro? Mas não basta ter suas aptidões reconhecidas, quem tem que reconhecer é o Outro. E na volatilidade da sociedade contemporânea, na ausência dos valores que os antigos sustentavam na religião, ou até mesmo nos valores tradicionais da família, o valor que aparece como dominante hoje é o dinheiro, sob forma de reconhecimento social.
O ter dinheiro não se trata, muitas do conforto que ele pode trazer, mas do reconhecimento da sociedade pelo dinheiro obtido. Mais uma vez, não é do objeto dinheiro em si que se trata, mas do amor do Outro, sob forma de reconhecimento social.
E a escola? Bem, vemos a escola como um prolongamento disso. Ela prepara os alunos para os concursos, levando em consideração, não sua produção subjetiva, não o desejo, que se esconde atrás da demanda de sucesso financeiro no futuro; mas para a aprovação. A aprovação, custe o que custar.
O adolescente tem que passar no vestibular, mas não só isso, tem que passar, para uma das carreiras que lhe prometam um bom futuro financeiro. Mas além da escolha de carreira, resta ainda a aprovação para a melhor faculdade, pois se ele não passar para a melhor faculdade, bem, alguem o terá feito e ele, automaticamente será pior do que seu concorrente bem sucedido. O adolescente vê sua vida desmoronar-se em sua frente, encara o nada, o vazio que o espera, o fracasso que atingiu, antes mesmo de começar; e é assolado pela angústia. Pronto, já era. Deprimiu. Agora só vai se salvar se alguém lhe receitar alguma coisa para sair dessa. Mas que coisa? Um remédio, ou uns remédios, que o façam ser mais adaptado ao que a sociedade espera dele. Mais atento, mais objetivo, mais sagaz, menos sucetível às emoções que o impedem de alcaçar os objetivos que o tornarão objeto de aceitação social.
Era aqui que queria chegar. Qual o papel do profissional de psicologia neste cenário? Como puderam perceber, não somos aqui da opinião que adere às Terapias Cognitivo Comportamentais e à medicação, pois o que fazem não é mais que paralizar o sujeito em algum lugar onde a divisão que lhe constitui fica na sombra. Mas o mundo dá voltas, e o sol vai novamente iluminar aquilo que a sombra escondia. E terá adiantado? Toda a medicação? Todo o treinamento para bloquear a angústia e, para isso abafar o desejo deste adolescente?
O sujeito emerge da falta, seu desejo se articula na fantasia ($ ◊ a) que se lê $ - S barrado , ◊ - rombo, de a. Ela é, por um lado, a resposta ao desejo do Outro, por outro, a vinculação com a falta no campo significante. A fantasia pela qual se expressa o desejo é a articulação de todas as formas como ele se pode relacionar com os objetos que o cercam, ou a relação do inivíduo e suas imagens (MILLER, 2002). Se escondemos o que há de hiato entre ele e o que a sociedade dele espera, se a tapamos com antidepressivos, ou ritalinas, o que será do sujeito, senão um objeto da sociedade, do Outro? Sem o hiato, o desejo não aparece, sem a falta, o sujeito permanece objeto, em primeira instância, de seus pais, e em segunda, do restante das figuras que aparecerão na função do Outro, da autoridade, da lei.
Freud (1930/1996), em O mal-estar na civilização, fala da existência da neurose no homem como consequência de sua incapacidade de suportar a medida de privação imposta pela sociedade, favorecida pelos ideais culturais. O autor conclui que, se tais exigências fossem abolidas ou atenuadas, haveria um retorno da possibilidade de felicidade.
É isso que propomos na sala de aula, um distanciamento da figura do professor, dos ideais impostos pela cultura. Não a apresentação de um saber sobre os assuntos debatidos, mas uma flexibilização do saber cristalizado como verdade total.
Para que o sujeito emerja, é preciso que haja uma falha na lei. Sabemos que a lei é a lei da palavra, a lei simbólica, e que, portanto, a verdade que abriga é não-toda. Mas como fazer, se o que se impõe é uma competição de tudo ou nada? A família, a mídia e também a escola levantam a bandeira da adaptação social, do reconhecimento daqueles que logram se provar dignos de receber muito dinheiro por aquilo que fazem. O que o profissional da área psi, que não levanta a bandeira da normatização tem a dizer sobre isso?
O Adolescente, a Escola e a Ética:
A escola se coloca como lugar de preparação para a vida adulta, ela assume a função de moldar os adolescentes para que eles possam ter as respostas adequadas ao que a sociedade espera deles. Freud, em 1930 (1930/1996), já dizia que boa parte de nossa miséria vem do que chamamos civilização. O modo como são reguladas as relações dos homens entre si em nossa sociedade se baseia é exigência da liberdade individual frente à vontade do grupo. O desconhecido, segundo o autor, não é digno de amor, mas tem direito à hostilidade, já que, quando lhe traz vantagem, não hesita em prejudicar o outro. Este é sintoma dos laços sociais cotidianos que gera o sentimento de que cada um apenas se ocupará de trazer o bem para si, desconsiderando os que o cercam, e se necessário, fazendo uso deles para atignir seus próprios fins (FREUD, 1930/1996).
A escola é promotora de angústia, por ser adepta aos valores de competição vigentes, e por tratar-se ela também, de uma instituição, que por mais que indiretamente, no caso das escolas públicas, serve a um sistema no qual será reconhecida, apenas, se gerar uma recompensa financeira. A escola precisa, para se manter em uma posição de reconhecimento, que os alunos que alí estudam, sejam bons, o que equivale a dizer que ela precisa que eles sejam aprovados nos melhores concursos.
O bem que a escola visa para seus alunos, nada tem a ver com o que seria bom ou mal para o sujeito, as boas notas, ou a aprovação nos concursos, não faz necessariamente bem para eles. A referência para o bem que a escola espera está em outro lugar que não o sujeito. É um bem cristalizado em valores sociais do que seria bom para todos, para todos os que quiserem alcançar algum sucesso na vida. Vemos pesquisas, manuais, orientações as mais diversas sobre como alcançar o sucesso; e todas elas baseadas em cálculos, em estatísticas e projeções matemáticas, o que supostamente lhes confere a garantia de credibilidade apoiada na ciência. Mas sabemos que tal bem universal não passa de um mote imaginário.
O que pode promover um bem subjetivo, só emerge da divisão do sujeito, no caso, da constatação que o Outro - a escola, os pais, as pesquisas... - não é a imposição de uma verdade absoluta sobre ele. O adolescente tem que perceber que a escola não tem todas as respostas para sua felicidade futura, questionar os números apresentados pela pesquisa, romper sua identificação com a imagem so futuro projetado para ele. É assim, a partir da fenda, da rachadura que se abre no chão, na sólida base que antes via sob seus pés, que se abrirá espaço para que emerja seu desejo. Mas como a erupção de um vulcão, o surgimento deste, não será cômodo a nenhum dos envolvidos.
“Em 1905, Freud escrevia que o trabalho mais importante da puberdade consiste na separação, no corte da autoridade dos pais. Toda a adolescência é um trabalho de elaboração da falta no Outro. Elaboração de sua própria castração, quando o sujeito se dá conta de suas próprias impossibilidades, mas, sobretudo, da castração do Outro, dos pais e seus substitutos. Assim, a separação não quer somente dizer a separação da presença e da vigilância dos pais, mas, sobretudo, dos paradigmas de acordo com os quais a criança era objeto dos pais.” (ALBERTI, 2011, p.232)
A adolescência é um momento, no qual o sujeito precisa, por mais doloroso que isso seja, desligar-se de seus pais, sair do lugar de objeto de manipulação dos pais e das figuras de autoridade substitutas, assumindo a falta no saber do Outro sobre ele, para desbravar o mundo com suas próprias pernas, procurar o que admite como seus valores e dar lugar ao seu próprio desejo.
“A adolescência é o momento em que o sujeito se confrontará com esses dois impossíveis de uma maneira nova. Antesele ainda acreditava nos pais que lhe permitiam velar a falta no Outro. Ou, com Freud, é somente na adolescência que o sujeito não pode mais crer na capacidade dos pais de defendê-los dos encontros com o real.”(ALBERTI, 2011, p.233)
Enquanto criança, as identificações que sustentam o sujeito, têm como referência, a figura dos pais, mas também a de seus em seus substitutos, os professores, por exemplo. Com a rutura das identificações imaginárias, promovidas pela instauração da falta, o que antes eram referências, agora são pontos de interrogação que pedem a busca de novas referências do lugar de onde responder à pergunta que não quer calar: o que fazer para obter sucesso na vida? Como ser reconhecido? Como ser amado? Che vuoi? O que o Outro quer de mim? (LACAN, 1960/1998).
É por isso que no debate com os alunos adolescentes sobre seu futuro, impõe-se uma preocupação aos profissionais, principalmente os da área da psicologia, com a questão da ética. Deve-se atentar para que o ambiente que proporcionamos não seja apenas uma reprodução do discurso das figuras de autoridade, ou do discurso normatizador ao qual o jovem se assujeita nos ambientes tradicionais que frequenta.
A ética que me proponho a discutir não é a existência de um bem e um mal, apoiado em valores estanques, um bem supremo e um mal desqualificado.
Se tomamos essa Problemática, tal como se produziu na tradição normativa (...) do pensamento ocidental, veremos como as questões que se elaboram na Ética são (como que) dirigidaspor temas tais como Bem moral, as virtudes e os processos de alcançá-las, a questão da vontade, a relação da consciência com o dever etc., (...). Não nos bastam os elementos produzidos no discurso tradicional da Ética, desde que outros elementos aparecem como necessidades lógicas (...) para se pensar uma Problemática diferencial (KATZ, 1984, p.13-14).
Não se deve ater, pelo menos não exclusivamente, no trabalho com o adolescente, a discutir o que é bom ou ruim para o ele do ponto de vista de como ele satifaria melhor o que se espera dele. Isso seria contribuir para sua alienação nos ideais da cultura, seria reforçar suas amarras, ao invés de dar lugar a seu próprio discurso. Seria deixar de lado o que ele seria capaz de produzir a partir de seus questionamentos.
A partir de uma escuta clínica, afim á psicanálise, seria um paradoxo tomar esta via, já que o que aprendemos com Freud vai em outra direção, aquela que liberaria o sujeito das imposições morais e sociais, geradoras de sofrimento psíquico (KATZ, 1984).
A aula de Cultura e Cidadania que proponho deve, o tempo todo se escapar das armadilhas que oferecem, por um lado a posição e o ideário que ceram a imagem do professor; e por outro as opiniões fortes e muitas vezes infundadas, dos alunos, normalmente baseadas em valores familiares, no discurso escolar e muitas vezes religioso. Devemos ter em mente que o público de minhas aulas não pertence à uma classe social alta (com algumas excessões), que frequentou a vida inteira escolas municipais (também com poucas excessões) e que se pudéssemos traçar um perfil, incorrendo no risco de fazer aqui uma afirmação injusta, não discutiram muito nem na escola, nem em seu círculo social as questões que debatemos sobre cidadania e cultura.
Como a discussão sobre os temas propostos, é muitas vezes, inédita para os alunos, procuro dar uma breve introdução sobre o assunto para antecipar o debate e torná-lo mais frutífero. Foi aí que encontrei minha primeira dificuldade. Em meu percurso profissional, por mais que curto, já que acabo de concluir a graduação, não me havia colocado em situação semelhante. Sabemos que na clínica, em particular a psicanalítica, o analista ocupa lugar de suposto saber (ênfase no suposto) e desempenha a função de objeto causa de desejo. Ele não vem no lugar daquele que diz o que se espera do sujeito, não está no lugar de mestre - pelo menos é isso que e espera, embora não seja, muitas vezes, o que acontece na prática - que traz informações e dá dicas de como se adaptar melhor à vida em sociedade (LACAN, 1969-1970/1992).
O lugar do analista é o do equívoco, é o da escansão do discurso pronto, ele divide o sujeito (falamos aqui exclusivamente do sujeito neurótico), faz um corte na cadeia significante para fazer surgir seu desejo (o desejo do analisando, não do analista, é sempre bom lembrar), onde antes havia alienação. O analista, sujeito suposto saber, objeto causa de desejo, não pode apresentar uma verdade cristalizada pelo sujeito, mas ao contrário, tirá-lo da posição de objeto do Outro manipulador, dividí-lo, pontuar, no sentido de equivocar, para que emerja daí seu desejo, seus próprios questionamentos (LACAN, 1969-1970/1992).
Como poderia, um profissional baseado nestes princípios, que tem como ética de condução do trabalho, a escuta para dar lugar ao desejo do sujeito no lugar de aliená-lo no desejo do Outro, ocupar o lugar de professor, também chamado de mestre? Esta foi a indagação que me fiz (que me faço). Como, em uma posição de professora, não ocupar o lugar do mestre, aquele que traz uma verdade sobre o sujeito, ao invés de inquirí-lo sobre seu desejo? A dificuldade é que, neste ambiente, não se trata de sustentar o lugar de analista em um cargo institucional como, por exemplo, o de psicólogo escolar, mas a partir da função de professor. Como ter como fio condutor a ética do desejo a partir de uma posição de mestria no contexto da prática social em que se insere o PCS – Projeto Construindo o Saber?
O Discurso do Analista na Sala de Aula do PCS- Projeto Construindo o Saber:
O PCS- Projeto Construindo o Saber trabalha com a proposta de oferecer suporte didático a alunos de comunidades de baixa renda, complementando o ensino que recebem nas escolas e prepará-los para o acesso as faculdades e escolas técnicas. Além das matérias cobradas nos concursos, o programa de ensino conta com aulas de Cultura e Cidadania, oferecendo um ensino que estimula o senso crítico dos alunos.
O projeto começou com um único núcleo na comunidade do Rio das Pedras no Rio de Janeiro em uma escola da região, mas hoje se expandiu para outras áreas, sendo o núcleo que integro, localizado no bairro de Botafogo e as aulas na Fundação Getúlio Vargas, onde temos um convênio com a Faculdade de Matemática.
O trabalho é realizado aos sábados, das 8:00h às 18:00h (com uma hora de intervalo para o almoço das 11:00h às 12:00h), e o ambiente de trabalho é uma sala de aula tradicional, o que já de princípio impõe a expectativa da reprodução da lógica educacional na qual o professor fica na frente, apresenta o conteúdo, e os alunos (a-lunos, sem luz) sentam-se de frente para eles, esperando serem atiradas a eles as informações, as quais se espera que tomem como verdade, anotem, e reproduzam quando solicitados.
O primeiro diferencial do projeto é que os professores, todos voluntários, são jovens (não chegam aos 30 anos) e, por isso, têm uma linguagem que facilida a aproximação com os alunos. As aulas são dinâmicas e descontraídas, mas por mais íntima que seja a abordagem, quando se trata de conteúdos como álgebra e gramática, realmente é difícil se distanciar do paradigma descrito acima. Os alunos tem que aprender, e bem, o que passam os professores para obter aprovação nos concursos.
É interessante, além disso, que haja um espaço de monitoria no qual voluntários sentam com grupos pequenos de alunos (divididos de acordo com as dificuldades específicas de cada um) para discutir questões passadas na semana anterior. Aqui também vemos uma tentativa na individualização do ensino, uma preocupação com os diferentes alunos e suas dificuldades. Deve-se atentar, no ambiente da monitoria, para que não haja uma estigmatização daqueles alunos que têm mais dificuldade como alunos ruins e os que tem melhores notas nos simulados como alunos bons.
A aula de Cultura & Cidadania é mais uma forma de, em um ambiente que se assemelha ao ambiente escolar, oferecer um espaço que vai além do que se espera de uma sala de aula tradicional. O que tentamos é não impor valores e opiniões sobre os assuntos debatidos, desde a legalização do aborto, até as novas configurações familiares e a discussão política (uma das favoritas e mais presentes, principalmente por estarmos em ano de eleições presidenciais no Brasil). A proposta não é algo fácil de lograr, já que os alunos esperam dos professores uma verdade sobre os assuntos debatidos, uma resposta, a partir do que seriam os ideais da socieadade em nome de um bem normatizador.
O trabalho da aula de Cultura & Cidadania é, a partir de uma abordagem teórico-prática baseada nos fundamentos da psicanálise, tirar o professor da posição de mestre e incitar o deslocamento do aluno do lugar de objeto - no qual é depositado um saber sob forma de verdade - para que ele assuma o lugar de produtor de suas próprias verdades. A abordagem não pode ser feita de forma autoritária e o professor não deve falar da posição de portador de um saber a priorisobre as questões debatidas. Além disso, uma das tarefas mais desafiadoras é equivocar aqueles que já vêm, eles mesmos reproduzindo verdades estanques, alienados em valores, que nem sempre partem de uma posição subjetiva. Para isso, o que se procura nestas aulas é um alinhamento à função do analista, cujo discurso “considera o outro como sujeito e opera a partir do não saber, ou seja, de um saber inconsciente, considerando a particularidade do sujeito, e da contingência de cada caso (DUPIM, ESPINOZA e BESSET, 2011, p.271)”.
Explicaremos melhor o que queremos dizer com os conceitos de discurso do mestre e discurso do analista.
A teoria dos discursos de Lacan (1969-1970/1992), apresenta-se como forma de pensar o laço social, ou seja, a forma como as pessoas se relacionam umas com as outras socialmente e as influências que isso pode ter. Os discursos propostos são quatro: do mestre, do analista, da histérica e do universitário, mas para o propósito deste recorte, já que o que pretentemos é um olhar à instituição escolar, tradicionalmente alinhada ao discurso do mestre e a prática de um profissional de psicologia orientado pela psicanálise, observaremos apenas os dois primeiros.
Os discursos são representados por matemas, esquemas matemáticos compostos de letras, que apontam a relação do sujeito com o campo do Outro. Os discursos se estruturam a partir de elementos nele dispostos, seguindo a lógica da inscrição na linguagem, a partir da relação de um significante com outro significante. Um lado do esquela representa o sujeito e o outro o campo do Outro tratando de articular uma relação entre ambos, relação que sabemos impossível. O esqueleto do esquema tem a seguinte estrutura:
Sujeito Outro
à
No discurso do mestre, o significante que funda o sujeito, o S1 ocupa o lugar de agente; o significante do saber do Outro, S2, o lugar de outro; o sujeito barrado ocupa o lugar de verdade e o a, o resto que constitui o motor para o funcionamento de cada discurso, ocupa o lugar de produção.
Discurso do mestre
à
O que tiramos daí? Que neste discurso, quem funda o sujeito com seus significantes é o mestre, que o outro é detentor do saber sobre ele. O lugar de verdade é ocupado pelo sujeito, mas é uma verdade que não é produzida por ele, mas pelo saber do outro, construído a partir dos significantes do mestre. O objeto a é o que se produz com este discurso. “O atem ligação com o que Marx denominou ser a função de mais-valia, quer dizer, mais-da-trabalho, o excedente que não se paga, como o tempo que o proletário expende, e que não é ressarcido, se deslocando de casa para o trabalho (DUPIM, ESPINOZA e BESSET, 2011, p.274)”.
A mais-valia é, para Lacan (1969-1970/1992) um mais de gozar, é o gozo que não se paga, ao qual o sujeito não tem acesso, que neste discurso ocupa o lugar de produção. O resultado disso é, portanto, uma perda de gozo.
Quando o mestre está na posição de agente, ele direciona seu discurso ao sujeito, colocando este na posição de objeto. O mestre porta um saber anterior e absoluto sobre ele, o que encobre a divisão do sujeito e a impossibilidade de um saber todo, quando sabemos que ele é, a priorinão-todo, por estar inserido na linguagem (COHEN, 2006).
Quer dizer que o mestre não se interessa pelo sujeito, pois não quer saber da castração, da barra que divide o sujeito, marcando que não se pode ser todo, nem tudo saber. Ele se endereça ao outro (...), enquanto objeto de gozo, suscetível a mera manipulação” (DUPIM, ESPINOZA e BESSET, 2011,p.276).
Se o discurso do mestre é o que notamos mais frequentemente no ambiente escolar, o discurso do analista, por outro lado, é capaz de produzir efeitos inéditos. Neste discurso, o objeto aocupa o lugar de agente. O analista se faz de objeto apara dar lugar ao sujeito do inconsciente, denuncia a impossibilidade de um saber para todos, já que a volatilidade é uma característica fundamental do objeto causa de desejo. O agente dirige um saber inconsciente ao sujeito $, dando o saber S2, por ser um saber inconsciente, dá à verdade a característica de semidizer, de verdade não toda, e a produção deste discurso é o significante que funda o sujeito, o S1. “O analilsta, na posição de aimplica o sujeito em fazer emergir seus significantes-mestres que se encontram recalcados” (DUPIM, ESPINOZA e BESSET, 2011, p.274).
Discurso do Analista
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O analista, fazendo as vezes de objeto a, instaura um não-saber que impulsionará o sujeito a se haver com seu próprio saber (inconsciente) sobre o que sabe e o que desconhece. É importante ressaltar que o saber inconsciente não representa uma única verdade, senão meias verdades, pois, conforme já discutimos amplamente, o acesso à verdade universal é interditado pela condição humada de sujeito da linguagem (LACAN 1969-1970/1992).
Finalmente, o que podemos tirar dessa discussão, para uma aplicação prática ao problema apresentado?
Minha Experiência no Projeto:
Na tentativa de articular o que expomos a prática, farei um relato breve de minha experiência como professora de Cultura & Cidadania no PCS, que começou em março de 2014 (ano corrente) e ainda não se concluiu (estamos, na data de elaboração deste trabalho, em agosto de 2014).
Até agora, tivemos dez encontros, e minha proposta foi apresentar, em algumas aulas conceitos mais gerais, introduzí-los e abrir o espaço para discussão. Outras vezes optamos por pedir aos alunos sugestões de temas que gostariam de debater e outras, ainda, falar sobre questões políticas, a partir de uma abordagem histórica, para depois discutir suas opiniões. Falarei aqui sobre o primeiro encontro e sobre alguns efeitos que acredito ter percebido na dinâmica das aulas posteriores.
1ª aula:Introdução ao conceito de cidadania.
Comecei me apresentando, dizendo meu nome, trajeto profissional e por que achava que o projeto me traria algo de bom. Pedi que eles fizessem o mesmo, interditando apenas a resposta “quero ser alguém na vida”, depois que apareceu pela primeira vez. Já de saída, discutimos o que seria “ser alguém na vida” o que balançou alguns paradigmas sobre sua social que aparece como um estigma sob forma de verdade absoluta.
Foi interessante discutir com eles o que fazia o homem diferente dos animais sevagens, já que a primeira resposta, foi a que vem automaticamente: o homem é um animal racional. Pude introduzir o conceito de inconsciente e a teoria psicanalítica, que apesar de encarada com surpresa de início (“que viagem, professora...”), apareceu como enigma e gerou perguntas nas aulas seguintes. Concluímos que o que diferencia o homem dos outros animais é o desejo, já que este não é fixo, não se subordina às necessidades orgânicas do indivíduo, como acontece no mundo animal.
Deslizamos deste ponto para o tema da aula, a cidadania. Se o homem é movido pelo desejo, como conviver com os outros homens, também providos desta mesma característica?
Perguntei o que eles entendiam pelo conceito de cidadania, e após algumas respostas, apresentei a definição de cidadania que encontramos no dicionário Caldas Aulete Digital, que engloba o exercício dos direitos e deveres de ordem civil, política e social.
Considerei importante ressaltar que não basta exigir os direitos, pois nestes está implicado nosso dever de posicionamento ético no processo político democrático que vivemos. (“É professora, não adianta só reclamar, a gente tem que saber em quem vai votar...”). Fizemos aí, pela primeira vez a pergunta, que voltou a aparecer em outras aulas: “o que você quer com sua atitude?”, que se assemelha à pergunta que o Outro endereça ao sujeito para inqiurí-lo sobre seu saber e sua posição subjetiva. Che vuoi? Qual o seu desejo e como ele dá suporte às suas posições?
Considerei importante destacar, que embora alguns estivessem participando do projeto, segundo eles, para agradar os pais, também alí havia algo a ser dito sobre seu próprio desejo. Voltamos a falar sobre isso em outras ocasiões.
A aula continuou com um debate sobre o aspecto contingencial da cidadania, e se encerrou com uma discussão sobre o aborto. Os alunos apresentaram opinões diversas, cada qual, seguro de que estava sustentando a opinião válida. Minha principal preocupação foi buscar uma flexibilização das posições, levantando outros aspectos para que pudessemos nos deslocar de um saber total, para um saber não todo, que permite que cada um produza sua verdade, sempre atentando para o que ela diz sobre seu desejo.
Efeitos:dúvida x certeza
Ao longo do semestre os alunos vão ganhando confiança e, se antes esperavam de mim uma introdução sobre o tema da aula, hoje, quando chego, eles mesmos já se apresentam como portadores de um saber sobre ela. Não é raro que eu entre em sala e alguns se manifestem para dizer que já sabem sobre o que vamos discutir (muitas vezes o assunto é algo que aconteceu durante a semana e ganhou destaque na mídia). Quando escrevo o tema da aula do quadro, eles já não esperam que comece a falar, vão introduzindo suas opiniões, algumas vezes radicais de início, mas no fim da aula mais temperadas.
Muitas vezes me perguntam o que acho dos assuntos, sempre procuro não aparecer no lugar de portadora da verdade, e acho que me faço entender, pois como já sabem que não acredito que haja apenas uma opinião válida, eles, que no início estavam em busca de respostas, agora parecem aproveitar o deslizamento do tobogã de questionamentos que dão estrutura à aula. Os assuntos abordados variaram ao longo do primeiro semestre entre: a ditadura militar no Brasil e o autoritarismo de modo geral, o lugar da mulher na sociedade, o preconceito racial, a política de pacificação do Rio de Janeiro e a legalização da maconha. No segundo semestre, até agora, os temas aos quais nos aproximamos foram o sistema político brasileiro, seguido pelas novas configurações familiares, que geraram uma discussão sobre a homossexualidade. Todas as questões foram perpassadas pela questão da ética, que entendemos como a ética do desejo orientada pelos pressupostos psicanalíticos já descritos.
Minha preocupação em não propor soluções estanques se inscreveu como fio condutor das aulas e cuja dinâmica, muitas vezes já observada nos próprios alunos, é a elaboração de perguntas que equivoquem aqueles que apresentam posições radicais.
Finalizo este breve relato com uma experiência observada na última aula, quando um aluno, quando discutíamos sobre a adoção homoparental, faz a seguinte sugestão: “É que nem aquela música Vale tudone? Só que também vale homem com homem. Mas se ele quiser adotar, tem que ser responsável e conseguir responder o que ele táquerendo com aquilo.” O efeito produzido pelo discurso do rapaz, como podemos notar, é o defendemos como produção de uma verdade a partir do próprio saber do sujeito, efeito que se propõe como resultado do discurso do analista. A resposta que ele nos dá é que cada um pode fazer o que achar certo, desde que sustente sua posição de maneira ética para com seu desejo.
Considerações Finais:
A discussão apresentada teve o intuito de examinar a inserção do discurso do mestre, assim como do analista em uma instituição que se assemelha ao ambiente escolar. Acreditamos poder afirmar que a posição ética do profissional que tem como orientação a psicanálise pode se sustentar a partir de diferentes cargos ocupados em uma instituição, entre eles, o de professor, e que tal posição dependem, em grande parte das estratégias adotadas pelo profissional.
Se é que podemos falar nesses termos, creio poder afirmar, até agora, algum sucesso em minha tentativa, já que, ao pedir aos alunos, no fim do primeiro semestre a elaboração de um texto sobre o que a aula de Cultura & Cidadania promoveu como reflexão, a maioria das respostas ia em direção à flexibilização das verdades que antes acreditavam absolutas, assim como a possibilidade de falar sobre assuntos que não têm lugar nos outros ambientes que frequentam.
Se foi realmente isso que as aulas promoveram, acredito ter, por enquanto sido capaz de denunciar a impossibilidade de um saber que seja para todos, tal qual sustenta o discurso do analista e pretendo, daqui em diante, continuar apostando na possibilidade do sujeito de inventar seu próprio saber quando deparado às contingências da vida.
Artigo escrito por Lina Petraglia Psicóloga Clínica, Mestre em Teoria Psicanalítica.
*O compartilhamento desse artigo é autorizado desde que seja feita a referência à autora principal do texto.
Referências bibliográficas:
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COHEN, Ruth Helena Pinto. A lógica do fracasso escolar: psicanálise e educação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.
DUPIM, Gabriella; ESPINOZA, Marina & BESSET, Vera. Discurso do analista em uma prática social. In: org. CALDAS, Heloisa & ALTOÉ, Sônia. Psicanálise, Universidade e Sociedade, Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2011.
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KOYRÉ, Alexandre - Galileu e Platão. Lisboa: Gradiva, 1986.
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LACAN, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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